terça-feira, 6 de julho de 2010

Fome


Se tenho fome? Muita. Fome de vocês. Alimento-me tremendamente até fartar, e sempre falta, como se não houvesse fundo aqui. É tão simples que vocês nem chegam a perceber: nem bem lançam ao mundo um olhar mais lânguido, um sorriso mais frouxo, um medo mais devastador ou uma certa beleza que faz tontear, e cá estou eu, devoradora, iniciando meu ritual pagão. Minha vontade imensa da força inumana de vocês. Do animal que pulsa. Abro-me, pois, à selvageria delicada de devorar momentos. Abocanhar instantes. Comer, comer, comer, e me lambuzar de gente. Toda carinhosa, brincando de oferecer amor, confesso aqui e agora meu egoísmo crônico: minha vontade é sempre a de sugar. O néctar de cada um. E vocês nem notam. É que, por gentileza, sempre deixo de presente um pedacinho de mim. Como num mágico ritual de troca, eu - feiticeira em carne, sangue e espírito – faço uma mistura de nós todos num caldeirão de instantes. E apreendo o agora. Nada mais que o agora. O agora que é um grito solto no infinito. E pára aqui, bem na minha mão. O agora que eu pego e transformo em história. Dou a ele o nome de passado e mastigo, mastigo, mastigo ferozmente com meus caninos afiados, até que fique macio como um anteontem. Todo feito de saudades. Eu faço saudades de vocês, e vocês são muitos. Às vezes lhes esqueço os nomes e as feições. Recordo-me apenas do arrepio intenso que me provocaram. Eu como arrepios. Fazem cócegas na garganta e no coração.